
– Uma estrada que termina no mar! Vai!
Conduzia o carro em direção ao Sul.
Uma estrada que termina no mar! A frase tinha-lhe ficado na cabeça. Era da autoria da sua grande amiga e se ela lhe dizia para ir, ele, mesmo não querendo, teria que passar por lá. Não podia deixar de o fazer.
Há tantas estradas que terminam no mar ou sobre o mar, será que esta seria assim tão diferente? Pensava…
Julgava-se profundo conhecedor da costa sudoeste. Como podia ter falhado esta estrada? A praia, a aldeia, as casas perdidas na falésia, os pescadores, os jogos de matraquilhos de baliza a baliza intervalados com cerveja fresca. E o céu! Lembrava-lhe o planetário. Como citadino, comparava uma noite de estrelas à sala escura onde relâmpagos surgiam no teto; que ridículo…como se o planetário fosse a noite de estrelas. O termo de comparação deveria ser sempre a noite real e nunca um filme projectado no interior de uma sala.
– Viras à direita e segues para Brejão.
Ele seguia devagar desde S. Teotónio e parara num pequeno café tasca. Ele que até não era de conversas de café, quis parar para se sentir mais próximo das gentes alentejanas.
– Ó jovem, o mar é o mesmo aqui ou lá em baixo! Vai às algas? Respondeu e perguntou o septuagenário.
– Talvez…Ao mar vou! As algas andam por ali, devo encontrá-las!
Sem saber o significado das algas para a Azenha, safou-se bem, mergulhado no senso comum, numa frase que não dizia nada mas que podia dizer tudo.
As algas andam por ali…
Orgulhoso da ridícula resposta (ainda não sabia a dimensão do ridículo) colocou as chaves na ignição.
– Esquece Odeceixe e a tua princesa norueguesa, ela não vai estar lá e estrelas não vão faltar, vai à Azenha. Vai!
E o carro a querer seguir em frente, piloto automático que o guiava, não queria ver as saídas para a direita antes da ponte de Odeceixe, não podia haver, não queria que houvesse.
– Vai à Azenha do Mar!
E S.Teotónio a ficar mais longe, e o cruzamento mais perto, aquele que ninguém via, aquele em que o carro não queria virar.
Já não ouvia Azenha. Queria ouvir Mar, porque o mar é o mesmo aqui neste cruzamento ou lá em Baixo em Odeceixe.
– Vai ao Mar de Brejão, a tua princesa já deve estar perdida nas Serras do Algarve, agora é moda. Não percas tempo para Sul, fica já aí. Vai à Azenha!
E o cruzamento parado no tempo.
E o Caetano Veloso no Coliseu! E a mesa da tasca pronta à nossa espera, e o Pedro que não vai chegar, e o álcool que não pode entrar no meu corpo de grávida.
E eu aqui na Praia da Adraga com a Maria da Paz a olhar os irmãos pelo meu umbigo e o Pedro a descobrir a Praia escondida, a encontrar a Leonor e as ondas alentejanas para surfar. A aproximar-se do mar e a tocar com a prancha nas palavras que a poetisa bailarina escrevia com os pés na areia, dançando e rodopiando.
E os meus filhos a confundirem a areia da praia da Adraga com a areia do sudoeste alentejano e a arrancarem cada letra para dentro das pás e dos baldes, correndo de seguida na direção do mar, trazendo mais areia molhada. A construírem pequenos castelos que afundavam os passos e as letras dela. E a Maria da Paz sem perceber os irmãos, a esticar-se dentro da minha barriga para poder espreitar uma vez mais pelo umbigo que lhe servia de janela. Eu, a dar ordens para que apagassem o poema e o Pedro, paralisado na areia do Alentejo, a memorizar cada pedaço de letra que íamos apagando aqui pela Adraga. A escrever mais palavras com o bico da prancha. A tentar encaixar-se no poema que nós por aqui matávamos com a areia de Sintra, viajando numa espiral. Cá e lá, lá e cá.
E eu com estes pressentimentos de melhor amiga do Pedro, a tentar afastá-lo da Leonor como o afastei da norueguesa da serra algarvia. Arrependida de lhe indicar a direção da Azenha. Com medo que ele voltasse a sofrer, com medo que não gostasse das ondas… com medo de mais uma falsa sereia que esconde de uma forma bonita o tanto que de feio tem.
E a lutar com as palavras dela, que decerto enganavam o Pedro. A pressentir que ela não era mulher para ele e a mandar os meus filhos apagarem as letras, agora espezinhando-as com os seus pés nus, em saltinhos inocentes.
Se não formos nós será o mar. As marés estão grandes, é a morte do poema de areia! Morre agora no balde de plástico vermelho que um dos meus filhos carrega e morre mais tarde com a maré cheia. Morre duas vezes! E o vento que sopre! Que sirva de borracha verde, daquelas que não deixam vestígios.
Não acredites em palavras de areia!
E as palavras a desaparecerem na areia da Adraga à minha ordem. Mas sem o meu controlo, a nascerem no sul, na areia da praia da Amália, com o bico da prancha a desenhá-las e a seguir os pés da poetisa.
O Pedro a encontrar a Leonor e a sair satisfeito do mar, com ondas tortas e com algum vento, mas a encontrá-la. A ouvi-la falar, apaixonada pela sua terra:
– Para mim a Azenha é um pedaço de terra e de mar que tenho sempre comigo. É parte da minha identidade, da minha alma. É oxigénio que respiro, é oxigénio dos mergulhadores da apanha da alga.
Agora é que ele se perdeu e já vê nas ondas de vento ondas perfeitas. Está cego!

E eu sem saber se aquela bonita mulher é onda fiel da baía de sempre ou se quebra um dia aqui e outro ali, dependendo da maré e dos bancos de areia. Com medo que ela seja uma onda imprevisível, rasteirando o pobre homem, num corpo de espuma branca.
Toca o telefone que vibra, fazendo levantar grãos de areia na toalha laranja da praia da Sintra.
– Já não subo a Lisboa para jantar e o Caetano que arranque com o concerto porque eu não vou. Que toque só para ti e para a Maria da Paz, de camarote na tua barriga. Vou ficar aqui pela Azenha com uma garrafa de vinho e marisco a preço de pobre e, quem sabe, um beijo da Leonor e umas ondas sem vento.
E eu calada a ouvi-lo…
– Hoje, escrevi e li poemas na areia mas o vento soprava forte e apagava todas as letras. A maré enchia rápido e também não ajudava. Estranho… Parecia que a natureza estava a mando de alguém.
Obrigado por insistires para espreitar a Azenha! Já não sigo mais para sul! Por agora, este é o meu final de estrada!